domingo, 30 de março de 2008

Cartas da Casa dos Cucos - VI


























Caderno 4: cartas da casa dos cucos
Comédias, Furgão e a companhia do Fogão (sexta carta)


Hoje acordámos no furgão que está ali abandonado sob a latada. Crescem-lhe dentro ervas daninhas e os bichos fazem tocas nos estofos que já foram uma lura (quando o Ezequiel criava coelhos). Acordámos com a chuva a tamborilar no tejadilho.
Hoje pode ter sido dia de visita (embora ninguém me visite vai para mais de quarenta e nove dias, a avaliar pelos riscos na contra-capa do caderno). Hoje pode ter sido um desses dias [expressão “,meu amor” riscada]. É noite. Acordei (já aqui, no “escritório” da casa). Estão dois presentes na minha mesa-de-cabeceira (junto à cama de ferro e ao lavatório de esmalte): o relógio do avô e uma bússola daquelas muito pequenas com uma muito pequena lupa para ampliar pequenas coisas que ficaram órfãs de seus sentidos. Belos objectos sem préstimo para quem já perdeu a conta às horas e o sentido rigoroso do norte (deixamos pelo caminho a bagagem que deixou de nos fazer falta e nem por isso caminhamos mais leves).
No jardim acenderam umas gambiarras que me ferem a vista (acordaram-me como tu me acordavas quando éramos feitos de duas medidas de luz e uma de sombra). Há gente em pijama e camisa de noite a dançar de roda do tanque dos peixes vermelhos - não o da rega, onde se afogavam os gatos vadios - e a cirandar por entre os buxos do jardim. São gambiarras de luzes brancas, amarelas, fracas de brilho. Nada que se compare com aquelas com que o Zacarias da Augusta engalanava o terreiro da ponte para receber as Comédias. Eram dois dias por ano: depois dos Finados e pelo Entrudo. O Zacarias, que era coveiro, tinha boas mãos para as iluminações. Passava a tarde de volta do estendal de luzes e à noite recebia os artistas mais a colecta para o borrego da ceia (a pele já a pingar no chão da loja, prometida para um bornal ou uma gola de samarra no Inverno seguinte).
O avô levava-me pela mão (os olhos marejados de orgulho ou de uma tristeza imperscrutável); olhava o relógio: «já são horas das Comédias». Descíamos a rua do rio até ao terreiro. «Boa noite, Senhor Policarpo. Boa noite, menino», cumprimentavam-nos, uma de cada janela, a Menina Júlia e a Senhora Perpétua. Estugávamos o passo em direcção ao ajuntamento que já rodeava o estrado de tábuas emprestado pela banda filarmónica.
Um velho muito magro fazia o pino e caminhava sobre as mãos roxas como um enforcado voltado às avessas; uma mulher gorda engolia enguias vivas; e um senhor de bigodes aguçados fazia desaparecer sob uma colcha de cambraia «o Cavalo de Dom José» que reaparecia a trote vindo dos lados da rua do rio para gáudio de todos e do meu avô que, por um instante, me soltava a mão e aplaudia gritando “bravos”.
[passagem rasurada]
Depois íamos contando os seixos até à porta de casa «para espantar a fome do tempo». Se, pelo caminho, acontecia pararmos na taberna, o avô metia a mão ao bolso e estendia-me uma bússola pequena apetrechada com uma lupa. «Toma. Assim não perdes o sentido rigoroso do norte nem das letras miúdas no Livro». Sentava-se no degrau da entrada e ficava a ouvir – ao longe – o choro contínuo das crianças dos comediantes.
Agora posso dizer, enquanto olho pela janela do comboio: hoje foi dia de visita e os cucos lá fora já dançam sem mim.

***

A casa agora está vazia. [passagem rasurada onde se lê “de retratos”]
Lá fora já não há quem toque o sino (trindades e finados) e os cucos – se os houve – espantaram-nos as mãos que solícitas traziam aqui copos de água e pratos de louça branca sobre panos de renda (naperons de mãos de caboz moribundo: sempre a beleza das campas floridas). Para os comprimidos; copos de água para os comprimidos. Ficou uma mesa-de-cabeceira com papéis velhos e pontas de lápis alemães. E o fogão a gás que não sei se funciona (desde que se acabou a camomila no saco do nicho deixei de lhe dar préstimo: ao fogão e à tua omoplata de salamandra à superfície da fotografia e da água dos meus olhos).
Ia (iria) jurar que ouvi o Cauteleiro empoleirado numa oliveira – ali em baixo – a tocar El dia que me quieras. Foi ontem. Mas «não pode ser, menino, o Acácio finou-se vai para quase um lustro…», disse-mo a Menina Júlia. Apareceu-me aqui descalça e em camisa de noite: os pés roxos e o carrapito desfeito (tu ontem ao fundo das escadas do Malostranská a soltar uma nuvem loura) com os cabelos a darem-lhe pelos ombros. Eu tão pouco jamais a vira sem o carrapito armado. Abriu as mãos e deu-me uma noz de brobdingnag. «Esta outra é para o Ezequiel» (que dormia dentro do ouvido do menino que era eu). «Não se pode privar um homem de tudo, menino…». Descemos os dois ao galinheiro e esperámos até nos habituarmos à treva. Então o Senhor Ezequiel sorriu para nós (acordado) exibindo uma boca sem dentes: restos de penas coladas à espuma seca das comissuras dos lábios. Eu desatei-lhe os pulsos e a Senhora Júlia passou-lhe o unguento nas feridas deixadas pelo sisal.
O Senhor Ezequiel libertou-se da enxerga de serapilheira e foi a mancar despido até à porta (aqui atrás de mim) que conduz do pátio à rua. Da janela ficámos a vê-lo embrenhar-se para sempre no mato do caminho da serra.
Iria (ia) jurar que se voltou – ao longe – a exibir a noz de brobdingnag antes de desaparecer por entre os carvalhos. A Menina Júlia benzeu-me a testa e desceu a escada a arrastar a camisa pelos degraus.
Agora a casa está vazia. Ficou o fogão a gás como os restos de cartas ficaram espalhados pelo chão: lixo para alguém limpar. Vazia porque eu não conheço aquele homem insone nos espelhos; a casa dos cucos já não me serve. Abri a noz de brobdingnag, engoli-a sem mastigar, e sei que posso agora ir habitar o meu país de histórias.



Praha, Malostranská Beseda, T.G.N.


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