sexta-feira, 23 de maio de 2008

O famoso

O famoso a cavalo.

The horse and the egg

O primo inglês é mais alto, corpulento e bem moreno. Diz que é fidalgo, mas a única referência é o antropónimo, se o prefixo antro se pode aplicar a uma cavalgadura, de Sir Galahad. Veio ao mundo já com fama e esperança à garupa, por via dos antepassados. Mas daí a aparentar-se com o encontrador do Graal vai a distância dum bípede a um quadrúpede. De nota não consta nada, nem se campeou, se ganhou corridas ou se se ficou pelo parentesco com o dito cavalo. No entanto, há quem diga que é o famoso, cavalo do ovo… horse with na egg on the back – isto para ser sintético.

Na foto: Sir Galahad levado à rédea por Sir Joseph, the first, com ar apreensivo.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

A porca devida

Foi a memória dos passeios à cavalo numa porca, de tremelicante toucinho, que D. João VI ganhou medo aos tremores. O terramoto só lhe veio lembrar os sustos da tenra idade. Dessa memória ficou-lhe um gosto, a causa primeira da vontade de viver na Real Barraca.

Por Dentro do Cavalo de D. José


Sentindo-se indisposto havia já várias décadas, Cavalo decidiu ir ao hospital da sua área de residência. Dirigiu-se a S. José, onde, muito embora a instituição partilhe o nome do monarca que lhe adorna o dorso, se mostraram renitentes em atendê-lo. O seu médico de família, o physico Mor do Reyno, José Pinheiro de Freitas Soares, tinha, há muito, sido despedido. Para obter novo cartão da caixa, fundamental para poder inscrever-se na consulta, havia que fazer prova de residência, coisa impossível dado que o pedestal de Cavallo não possui número de polícia. Na ausência de um recibo da água ou da luz, de uma cópia do registo de propriedade ou do contrato de arrendamento, só uma declaração do Presidente da Junta de Freguesia lhe podia valer. Foi, assim, até à Rua da Prata, à sede da Junta de S. Nicolau, onde lhe disseram que falasse com uma tal de D. Odete. Pensando que se tratava de uma figura da nobreza, o nosso fidalgo equídeo cometeu a blague de lhe perguntar a que casa pertencia. Odete, uma pertinaz funcionária de uma obesidade entre o mórbido e o obsceno, trajando um vasto tailleur tipo Chanel de fabrico oriental, fitou-o furiosamente por entre as suas madeixas nacaradas, e, após ouvir impacientemente o seu caso, respondeu-lhe que tinha que fazer uma requisição ao Sr. Presidente da Junta e que este não a despacharia num prazo inferior a um mês, por se encontrar muito ocupado com a preparação da participação da freguesia nas Marchas Populares do ano seguinte.
Cavallo perdeu as estribeiras. Investindo à carga pelo gabinete do presidente adentro, deparou-se com este jogando, compenetradamente, a uma versão simplificada do sudoku no suplemento infantil do Diário de Notícias. Perante a colossal figura do éneo quadrúpede em plena fúria guerreira, o Sr. Presidente da Junta apressou-se, com mão trémula, a assinar a necessária declaração.

No Hospital de S. José, Cavallo do homónimo monarca foi submetido a diversos exames. Na impossibilidade de obter informações sobre os órgãos internos do paciente (nem as sondas nem os raios x penetravam o metálico mamífero) os médicos optaram por realizar uma ressonância magnética. Após numerosos testes à máquina para verificar que não estava avariada, o especialista de turno, um jovem clínico croata chamado Josip Baranović, saiu da sala de controlo espavorido como se tivesse visto um fantasma e chamou todos os médicos que pode encontrar. Após uma hora de conciliábulo, o Dr. Manuel de Arriaga, director clínico do hospital e conceituado catedrático de Medicina Interna, dirigiu-se à sala de espera para onde entretanto tinham mandado o nosso quadrúpede e numa voz hesitante dirigiu-se-lhe nestes termos: “sente-se bem, Sr. De D. José?” “Se me sentisse bem não vinha ao physico, meu caro.” Retorquiu Cavallo enfadado. “Desculpe mas o seu caso é de tal forma extraordinário que, em vinte e tal anos de profissão nunca vi uma coisa igual. O Sr. é completamente vazio por dentro, oco, não tem um único órgão no interior do seu corpo.” Declarou o Dr. Arriaga, descendo da sua sapiência de académico e adquirindo a franqueza e impotência de uma criança de oito anos a quem dessem uma equação de terceiro grau para resolver. “então é fácil, homem” respondeu Cavallo: “são gases.”


Cavallo preparando-se para fazer uma ressonância magnética.

domingo, 13 de abril de 2008



Aloé Vera ...




... Aloha, Vera!

Joaquim ouvia distraidamente o quarteto de cordas enquanto os seus pensamentos vogavam por entre assuntos triviais como a conta da luz que tinha que pagar até Terça-feira, a lâmpada gigante que tinha visto num bar a servir de candeeiro e a explicação da corrente eléctrica que lhe tinham ensinado no ciclo preparatório. Num outro nível de pensamento processava as imagens das pessoas que o rodeavam e imaginava as suas vidas, parando aqui e ali numa ou outra rapariga mais bonita para introduzir-se nas narrativas que ia construindo, interagindo com elas e estabelecendo relações fantásticas ora fugazes ora duradouras. Era sempre assim quando estava em silêncio ao pé de muita gente: na sala de espera de um consultório, no metro ou autocarro ou numa estação de comboios, mas num concerto como este, tinha ainda a música, cuja estrutura ia servindo de contraponto ao fluxo de ideias.

domingo, 30 de março de 2008

Cartas da Casa dos Cucos - VII

Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A ascensão do sineiro no princípio da Primavera (sétima carta)


A casa está vazia. Todas as salas, os quartos todos. Resta a minha mesa (não é minha), o papel pardo sob o caderno (a fazer de toalha) e o frasco de tinta preta (não chega a ser um tinteiro). Os móveis estão cobertos por lençóis e mantas ensopadas de orvalho. Há janelas partidas para o trânsito dos pássaros e musgo sob as frechas das portas que cresce do terraço para o escritório.
O Senhor Ezequiel fez as pazes comigo. Dorme agora enroscado dentro da minha orelha. Já não o admoesto mais (esqueci-me das lesmas e do rasto que desenhavam sobre as lousas do adro). Atei-lhe os pulsos com gaze (sobrou de uma lata de costura) para estancar o (pouco) sangue. Aninha-se e estende os pés para a minha nuca.
Na segunda gaveta (por baixo desta com fotografias) encontrei a 6.35 do pai (a família ainda por cá anda nos retratos e na papelada roída pelos bichos). A corda-do-mato pendurei-a numa trave do tecto da cozinha (de onde pendia uma gambiarra e hastes de loureiro). Na cozinha começaram a crescer cogumelos, daqueles tenros com pintas vermelhas. Abro e fecho a primeira gaveta. Não são exactamente fotografias; pego-lhes com cuidado e inclino suas imagens: negativos sobre vidro com sais de prata e arestas onde me corto nos dedos.
O Senhor Ezequiel encolheu-se mais para trás e enche a cova da minha nuca. Agora parecemos dois namorados: de testas encostadas na fotografia; a engolir o mar pelas narinas e a deixar desaparecer um ombro nu (fora de campo) no canto estalado. São instantâneos de casamentos, cenas de praia e barcos à vela, tios de mãos dadas, crianças (fatinhos de marujo), gente feliz; dias felizes como este em que combinámos subir a encosta de aveleiras, carvalhos e castanheiros e depois galgar um pouco mais com os fetos a darem-nos pelo peito a anunciar já a luz do topo. Já não há quem toque os sinos. O Senhor Ezequiel tem artroses nas mãos como eu tenho feridas nos dedos.
As arestas dos rostos de gente tão feliz (a casa das fotografias). Lá pelos lados da orla de copas cheias de pássaros descansarei da caminhada. Abro e fecho a gaveta. A 6.35 já vai despachada no bolso do Ezequiel. Está bem ensinado (leva a corda-do-mato enrolada no ombro). «Diz-me uma coisa bonita» e encosta-me bem aquilo à nuca. «Agora somos só um». Depois deixa-me estendido entre a esteva a olhar para ele - magnífico - contra o céu azul (agora azul, que parou de chover no bosque e os bichos vêm conhecer-me, lamber-me as pálpebras, farejar-me as mãos o nariz e os lábios). Logo ali à frente o Ezequiel estaca junto da grande árvore – aquela adornada por uma coroa baixa de cogumelos com pintas vermelhas – e lança a corda por sobre o galho mais forte. Debruça-se mais uma vez sobre o ventre, «só mais uma vez, menino» e adormece em descanso embalado pela música inocente do seu corpo distendido (agora na companhia do Acácio e do Zacarias; um braço abandonado por cima de cada ombro, a rirem dos dias felizes para a máquina dos retratos). [frase “Enquanto ouviam foliões El dia que me quieras.” riscada].
Abro e fecho a gaveta. Reparo na 6.35, na cigarreira e na bússola (esquecemo-nos de a levar para a serra). Acendo o cigarro que resta. Fecho a gaveta e ergo-me; estugo o passo, os restos da chuva da madrugada a colarem-me as calças aos joelhos contra a giesta e a esteva. Deixo para trás o Ezequiel (já não precisamos um do outro; não se aninha já dentro da minha nuca; não toca os sinos). Deixo-o na companhia do velho carvalho, coroado por cogumelos orvalhados e pelo sorriso de seus neófitos amigos a quem se abraça na fotografia. Alcanço o cimo da serra e deixo-me caminhar de olhos fechados. Nunca aqui tinha estado no cimo da serra (esta fotografia junto da bússola e do terço da avó). Abro os olhos: a luz do fim da manhã espanta os bichos e abre-se sobre o vale onde corre um lameiro largo juncado de choupos juvenis e flores do campo. A luz amplifica todas as cores e soergue brilhos e pólenes do lameiro do vale (neste lado da serra onde eu nunca viera). Eis que então se ouvem os sinos no campanário da vila (onde vazia ficou a casa).
Eis enfim o caminho para nenhures.




Santa Apolónia, T.G.N

Cartas da Casa dos Cucos - VI


























Caderno 4: cartas da casa dos cucos
Comédias, Furgão e a companhia do Fogão (sexta carta)


Hoje acordámos no furgão que está ali abandonado sob a latada. Crescem-lhe dentro ervas daninhas e os bichos fazem tocas nos estofos que já foram uma lura (quando o Ezequiel criava coelhos). Acordámos com a chuva a tamborilar no tejadilho.
Hoje pode ter sido dia de visita (embora ninguém me visite vai para mais de quarenta e nove dias, a avaliar pelos riscos na contra-capa do caderno). Hoje pode ter sido um desses dias [expressão “,meu amor” riscada]. É noite. Acordei (já aqui, no “escritório” da casa). Estão dois presentes na minha mesa-de-cabeceira (junto à cama de ferro e ao lavatório de esmalte): o relógio do avô e uma bússola daquelas muito pequenas com uma muito pequena lupa para ampliar pequenas coisas que ficaram órfãs de seus sentidos. Belos objectos sem préstimo para quem já perdeu a conta às horas e o sentido rigoroso do norte (deixamos pelo caminho a bagagem que deixou de nos fazer falta e nem por isso caminhamos mais leves).
No jardim acenderam umas gambiarras que me ferem a vista (acordaram-me como tu me acordavas quando éramos feitos de duas medidas de luz e uma de sombra). Há gente em pijama e camisa de noite a dançar de roda do tanque dos peixes vermelhos - não o da rega, onde se afogavam os gatos vadios - e a cirandar por entre os buxos do jardim. São gambiarras de luzes brancas, amarelas, fracas de brilho. Nada que se compare com aquelas com que o Zacarias da Augusta engalanava o terreiro da ponte para receber as Comédias. Eram dois dias por ano: depois dos Finados e pelo Entrudo. O Zacarias, que era coveiro, tinha boas mãos para as iluminações. Passava a tarde de volta do estendal de luzes e à noite recebia os artistas mais a colecta para o borrego da ceia (a pele já a pingar no chão da loja, prometida para um bornal ou uma gola de samarra no Inverno seguinte).
O avô levava-me pela mão (os olhos marejados de orgulho ou de uma tristeza imperscrutável); olhava o relógio: «já são horas das Comédias». Descíamos a rua do rio até ao terreiro. «Boa noite, Senhor Policarpo. Boa noite, menino», cumprimentavam-nos, uma de cada janela, a Menina Júlia e a Senhora Perpétua. Estugávamos o passo em direcção ao ajuntamento que já rodeava o estrado de tábuas emprestado pela banda filarmónica.
Um velho muito magro fazia o pino e caminhava sobre as mãos roxas como um enforcado voltado às avessas; uma mulher gorda engolia enguias vivas; e um senhor de bigodes aguçados fazia desaparecer sob uma colcha de cambraia «o Cavalo de Dom José» que reaparecia a trote vindo dos lados da rua do rio para gáudio de todos e do meu avô que, por um instante, me soltava a mão e aplaudia gritando “bravos”.
[passagem rasurada]
Depois íamos contando os seixos até à porta de casa «para espantar a fome do tempo». Se, pelo caminho, acontecia pararmos na taberna, o avô metia a mão ao bolso e estendia-me uma bússola pequena apetrechada com uma lupa. «Toma. Assim não perdes o sentido rigoroso do norte nem das letras miúdas no Livro». Sentava-se no degrau da entrada e ficava a ouvir – ao longe – o choro contínuo das crianças dos comediantes.
Agora posso dizer, enquanto olho pela janela do comboio: hoje foi dia de visita e os cucos lá fora já dançam sem mim.

***

A casa agora está vazia. [passagem rasurada onde se lê “de retratos”]
Lá fora já não há quem toque o sino (trindades e finados) e os cucos – se os houve – espantaram-nos as mãos que solícitas traziam aqui copos de água e pratos de louça branca sobre panos de renda (naperons de mãos de caboz moribundo: sempre a beleza das campas floridas). Para os comprimidos; copos de água para os comprimidos. Ficou uma mesa-de-cabeceira com papéis velhos e pontas de lápis alemães. E o fogão a gás que não sei se funciona (desde que se acabou a camomila no saco do nicho deixei de lhe dar préstimo: ao fogão e à tua omoplata de salamandra à superfície da fotografia e da água dos meus olhos).
Ia (iria) jurar que ouvi o Cauteleiro empoleirado numa oliveira – ali em baixo – a tocar El dia que me quieras. Foi ontem. Mas «não pode ser, menino, o Acácio finou-se vai para quase um lustro…», disse-mo a Menina Júlia. Apareceu-me aqui descalça e em camisa de noite: os pés roxos e o carrapito desfeito (tu ontem ao fundo das escadas do Malostranská a soltar uma nuvem loura) com os cabelos a darem-lhe pelos ombros. Eu tão pouco jamais a vira sem o carrapito armado. Abriu as mãos e deu-me uma noz de brobdingnag. «Esta outra é para o Ezequiel» (que dormia dentro do ouvido do menino que era eu). «Não se pode privar um homem de tudo, menino…». Descemos os dois ao galinheiro e esperámos até nos habituarmos à treva. Então o Senhor Ezequiel sorriu para nós (acordado) exibindo uma boca sem dentes: restos de penas coladas à espuma seca das comissuras dos lábios. Eu desatei-lhe os pulsos e a Senhora Júlia passou-lhe o unguento nas feridas deixadas pelo sisal.
O Senhor Ezequiel libertou-se da enxerga de serapilheira e foi a mancar despido até à porta (aqui atrás de mim) que conduz do pátio à rua. Da janela ficámos a vê-lo embrenhar-se para sempre no mato do caminho da serra.
Iria (ia) jurar que se voltou – ao longe – a exibir a noz de brobdingnag antes de desaparecer por entre os carvalhos. A Menina Júlia benzeu-me a testa e desceu a escada a arrastar a camisa pelos degraus.
Agora a casa está vazia. Ficou o fogão a gás como os restos de cartas ficaram espalhados pelo chão: lixo para alguém limpar. Vazia porque eu não conheço aquele homem insone nos espelhos; a casa dos cucos já não me serve. Abri a noz de brobdingnag, engoli-a sem mastigar, e sei que posso agora ir habitar o meu país de histórias.



Praha, Malostranská Beseda, T.G.N.


sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Os dois cavalos

Tanto quanto se sabe não foram primos. Não foi com coices que ficaram famosos: Um por seu monteiro e outro por causa da mulher do patrão. O cavaleiro dum usava plumeira e o outro animal tinha como cauda um penacho.
Os Távoras terão dito do secretário de Estado do Rei o nome do cavalo do outro. Tanto quanto se sabe não foram primos nem tampouco de mesma raça. E se os jesuítas saíram correndo, perdidos, no tempo do Cavalo de D. José, noutro tempo o Filho da Puta ganhou correndo.
É esta a estória de dois famosos que não foram primos, tanto quanto se sabe.

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sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Oops

Sou mesmo parvo! Da minha boca saem tantas asneiras, que parece a Cahora Bassa do disparate.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Black Power



P'ra lá do Marão, mandam os que lá estão;
P'ra lá de Cabinda, manda a preta mai'linda.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Arrumos

Arrumar a vida é deixar de a viver. O que é da natureza é o caos. Todos os caos são um cosmos. Ai agora, pois com estas palavras torno a minha vida muito difícil.
Vou arrumar a minha, porque não gosto dela. Depois desarrumo-a toda e ainda mais. Hei-de pensar que não sei nada da vida. É melhor sentar-me e esperar.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Mudar

Vou mudar de vida... da minha para a tua.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Efeméride

No fundo do mar está um navio em pedaços e, junto dele, uma placa a lembrar o seu naufrágio... até que a água e o tempo os juntem num mesmo esquecimento.

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Loucura

Eu perdia-me aqui com a minha nostalgia e claustrofobia. Ficava ali só com os meus fantasmas a conversar ou falava sozinho. O corredor fechado não é um espaço muito. Não é um espaço pouco. É um espaço bastante.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Do Armário do Cavalo de D. José



O Cavalo de D. José é um equídeo muito bem apessoado, preocupado com a sua aparência, um dandy.
Nesta gravura, publicada na Gentleman’s Gazette de 1760, vemo-lo trajando um lindo redingote de pernas de D. José elaborado pelo célebre alfaiate lisboeta Jorge Armando, com os mais finos linhos da Irlanda. Trata-se de um modelo de verão, mais ligeiro do que o adereço monarca completo e que dispensa a utilização de sela. Pode questionar-se a utilidade desta peça de vestuário, que não tapa do frio nem do calor, não protege da chuva, do vento ou do sol, nem tampouco cobre as partes pudendas de um cavalo, mas não se iluda o leitor, pois a primeira função de qualquer peça de roupa é o adorno e embelezamento do seu proprietário. Se a protecção dos elementos naturais fosse a razão que nos levasse a ataviar-nos de panos, o clima ameno da Capital do Reyno permitir-nos-ia uma nudez primordial durante grande parte do ano; se por outro lado fosse o pudor católico o motivo único para o vestuário dos fieis, então andaríamos todos trajados com aborrecidas sotainas de um tristonho tom pardo.
As pregas do casaco de pernas de D. José são cuidadosamente estudadas para conferir um ar natural ao conjunto. Os drapejados assim obtidos lembram as togas dos senadores da Roma antiga. O Cavalo de D. José tarda quotidianamente cinco horas em arranjar-se. este processo é tão lento e cuidadoso que os transeuntes, lá em baixo na praça, nem se apercebem dos seus aturados movimentos. O resultado de tamanha preparação confere-lhe alguma rigidez, mas não eram os colarinhos de Brummell tão engomados que tornavam impossível virar a cabeça sem que todos os membros o autorizassem? A elegância tem o seu preço.



À pergunta : "un Roi, a quoi ça sert?", lançada em tom baixo e rancoroso pelo cavalo de Marat quando passava aos pés da estátua, velho e maltratado, puxando uma carroça de vitualhas do exército de Junot, no fim de Novembro de 1807, o nosso quadrúpede respondeu surpreendido: "ora essa, é um complemento muitíssimo janota, velha pileca!"



sexta-feira, 27 de julho de 2007

Percebes?

Não é uma flor, é uma anémona. Até um economista percebe!
Olha bem, perece-te uma flor? Se te parece, estás bem. Se disseres que não, precisas dum saca-olhos.
Se olhares e disseres logo que é uma anémona é porque não tens um pingo de sensibilidade. Até um economista picuinhas diria que é uma flor! Por amor de Deus! Qualquer um diria que é uma flor, apesar de ser uma anémona!
Se te parece ser uma flor, parece-te bem... estás bem.
Se disseres que não, precisas dum saca-olhos!

O Cavalo em pelota


O Sr. D. Cavallo Duarte Francisco Godofredo Hipólito de Mello Mascarenhas Vasconcellos e Sá de D. José, Cavalo de D. José para os amigos, é um animal nobre, elevado, mas, como é frequente em criaturas da sua estirpe, esconde no armário do passado um ou dois esqueletos cabeludos.

Em 1745, imbuído dos ideais iluministas abandona o país para se alistar no exército de Frederico o Grande, de quem se torna montada favorita durante a Guerra dos Sete Anos (só anos mais tarde soube das perferências heterodoxas do Imperador e percebeu a razão das pródigas carícias que este lhe fazia). Mas a vida de caudelaria, o convívio com intelectuais como o Cavalo de Voltaire e, sobretudo, a frequência de baias éguas de Alta Escola em breve arrefeceriam o seu ardor marcial avivando outros fogos. Após uma escandalosa relação com a égua persa de Sofia Wilhelmina de Bayreuth, que acabou num duelo em que matou o alazão de Giacomo Casanova, Cavalo de D. José teve que fugir apressadamente da Prussía. Ao receber a notícia da sua queda em desgraça, o seu velho pai, D. Cavallo Francisco José de D. João V, teve um desgosto tão grande que se recusou a trotar até ao fim da vida, passando directamente de um passo lento e pesaroso para um galope furioso.
Cavalo de D. José corre então a velha Europa frequentando as mais baixas estrebarias na companhia das piores bestas: cavalos de má raça, mulas de reputação duvidosa e grosseiros jumentos. Chega mesmo a passar algum tempo num cárcere de Nápoles e só a intervenção misericordiosa do seu primo Cavallo do Papa Bento XIV o livra do matadouro. São dessa época de devassidão equestre as desalinhadas tatuagens que mandou fazer no lombo e ventre e que podemos ver nesta gravura que vendeu para uma gazeta cor-de-rosa de Madrid a troco de uma ração de aveia.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - V















Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A casa de arrumos e o caminho para o rio (quinta carta)


Foi no fim do Verão. Aqui nunca há Verão nem o cheiro das latadas, o pólen das margaridas a colar-se aos dedos, um velho a esmagar-nos o pulso com uma moeda das escuras «para chupar o ferrão da malina da vespa». Podia roubar da torre o Calendário Perpétuo – nunca soube bem do que efectivamente se trata – que ainda assim aqui nunca haveria Verão. Mesmo três vezes repetido no mesmo parágrafo: só a brancura dos lençóis e as salvas de inox com alfaias de gente de mãos bem tratadas e lá fora – do outro lado da janela embaciada – a mata de cedros da Boémia a prometer mais solavancos pelos carris adentro e um ou outro lobo a espreitar entre os troncos.
Perpétua era a amiga da Menina Júlia. Aquela casa de arrumos onde ambas guardavam os frascos vazios para a compota de marmelo do Outono e onde iam buscar diospiros para nos oferecer cobria-se de ceridónia [sic] no tempo quente. Era a panaceia que desde meninas colhiam, quebrando raminhos pelo talo para curarem as feridas uma da outra. «Não há maleita que medre com este leite amarelo, menino. Ora dê cá a mãozinha». E os arranhões das silvas desapareciam, assim como a chaga invisível das urtigas: um milagre da Menina Júlia e da Senhora Perpétua ali junto da casa dos arrumos.
O Fernanditinho não deixava a tia «botar-lhe o unguento»; tinha medo da tinta amarela a escorrer-lhe pelos braços, do toque morno na pele e do seu cheiro doce. «Não, não. Parece mijo de gato» e fugia pelo carreiro que levava dali à leira do rio.
Em caixas de madeira guardavam rolhas e meias velhas e deixavam-nos brincar com elas enquanto, sentadas num banco corrido, iam enxotando e matando os moscardos que lhes pousavam nos joelhos e nos lenços do regaço.
Na rua estreita e sinuosa de seixos e barrigas de cal e pedra que se descia até ao açude, moravam – desde sempre – uma em frente à outra. Uma janela em frente da outra (perto do murmúrio constante do moinho e da levada). Na rua estreita por onde as crianças corriam de toalhas a fazer de turbantes e sacos de plástico com sabão macaco para a barrela da tarde.
[parágrafo ilegível]
Há já muito tempo que não falavam. Viam quem passava, olhavam uma para a outra, perdiam-se nos olhos uma da outra e franziam as testas a revolverem as suas recordações de velhas.
Agora a Senhora Perpétua morreu e a janela da frente está fechada.


Comboio Cesky Budejovice/Praha, T.G.N.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - IV




















Caderno 4: cartas da casa dos cucos
O clarinete e a oliveira (quarta carta)

Aqui deixam-me ter a máquina e um caderno. A cama de ferro e lençóis brancos. Foi ontem. Vinha de lhe dar de comer a malga de sorgo e o Senhor Ezequiel, enquanto lambia os beiços, lembrou-se «dos dias felizes». Aconteciam entre Abril e Maio, antes do calor começar a matar as papoilas. Era ele quem me segurava a mão pelas escadas acima da torre sineira; a Maria Madalena, ainda por emprenhar, seguia-nos afoita e espantava os pombos da beira dos sinos. O Senhor Ezequiel tocava matinas e deixava-me ficar ali. «Depois já sabe, menino, bate com a porta, dá duas voltas à chave e deixa-mas no buraco da tranca». E coxeava pelas sombras abaixo com a gata a brincar-lhe entre as pernas.
Do alto do retiro fresco ouvia tudo: os pombos que regressavam à torre, o rio a tropeçar nos pedregulhos do açude, o Acácio da taberna na azáfama de guardar sachos e enxadas na carrinha abandonada e o Cauteleiro à sombra de uma oliveira do horto a tocar La Llorona no clarinete velho que já fora do pai.
[passagem riscada onde se pode ler:”(…) “Ai de mi llorona, Llorona de azul celeste “(…) “entrou uma cantora canadiana na Vinarna acompanhada de um clarinetista (…) sentou-se junto do palco (…) “Aunque la vida me custe, No lejarei de querer-te”(..)”]
Numa tarde em que me debrucei no anteparo da torre vi os dois irmãos (mais ou menos da minha idade); de cabelo rapado: o mais novo com um casaco do mais velho, o mais velho com uns sapatos de um primo que agora estava na tropa; «parecem dois macacos» dizia o Cauteleiro que tinha vindo tocar para a minha beira.
Às vezes dávamos-lhes de comer; eram iguais a nós em tudo menos nas papadas dos olhos e nas mãos (de velhos); faziam as melhores fisgas do adro. O pai tinha partido as duas pernas num dia longe num lugar longe; agora partia-lhes a cara quando mijavam na cama. Um de gravata o outro de laço, nos olhos um brilho trémulo de orgulho ferido: iam à primeira comunhão da irmã mais nova com roupa de empréstimo.
Às vezes ainda os vejo pelo avesso dos olhos quando me emprestam um lugar a um canto da sala para me vestir da idade adulta: um macaco



Cesky Budejovice/ Vinarna Voltaire, T.G.N.






Zirkadia

Zirkadia situa-se num vale profundo, mas a terra é plana e verdejante. No passado, os seus habitantes dedicavam-se à pastorícia. Hoje o país exporta petróleo e continua a produzir carne de ovelha e lã. A água mineral é outra fonte de receitas. O termalismo e o turismo a ela associado têm tornado famoso este pequeno e pacato país.
Zirkadia é governado por um Rei bondoso que colecciona selos e é activista dos direitos dos animais. Ao domingo reza ajoelhado na Catedral do Imaculado Coração de Maria, começada a construir no século XII e terminada no século XVIII, onde prevalece o estilo gótico.
Em Zirkádia bebe-se muita água mineral, cerveja feita a partir de cevada e vinho branco com baixa graduação alcoólica. É comum verem-se homens e mulheres de mão-dada nas ruas. As pessoas cumprimentam-se com quatro beijos na cara. As palavras «bom dia» e «obrigado» são empregadas com frequência. Os Zirkadianos não gostam que lhes falem em estrangeiro. Não há grandes artistas conhecidos, no passado ou no presente, que tenham nascido em Zirkadia, pois este país sempre foi provinciano e isolado. Além da água mineral ser, claramente, a bebida preferida dos seus habitantes.
A língua Zirkadiana não é indo-europeia. Os Zirkadianos não sabem se são caucasianos e recusam qualquer tipo de racismo. Durante o período pré-histórico desenvolveu-se um tipo de escrita baseado em traços e quadrados, que está ainda hoje por decifrar e que passou para o folclore pictórico local. O que aliás não é de estranhar num país onde as férias são passadas, em regra, em termas.
Zirkadia é habitada por mais de cinco milhões de pessoas e toda a gente é benvinda e bem integrada, mas é obrigada a gostar de água mineral e a passar alguns dias das férias em termas.
Zirkadia chama-se esta imagem e roubei-a a alguém que não sei o nome. Desconheço-lhe o significado original.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Descripção Analytica do Dito Cavalo

Prometi a mim mesmo que não falava no cavalo de D. José, mas como sou um joguete nas mãos do "Imp of Perversity" (1), cá vai:



O cavalo de D. José é um cavalo sereno, fleumático, quase diria nonchalante.
Levanta a pata como quem diz "tiguem-me daqui estes bichos" (vide infra "cobras"), com alguma repulsa mas absolutamente nenhum temor. o g em vez do r não é uma gralha; desde o regicídio, a que o nosso quadrúpede teve que assistir impávido, que adoptou este tique dos Incoyables (2). Já encomendou umas calças às riscas largas azuis e brancas mas não há maneira de lhas trazerem. Não há criadagem como antigamente.




(1): The Imp of the Perverse
(2): Les Icroyables

Cartas da Casa dos Cucos - III


Caderno 4: cartas da casa dos cucos
O Senhor Policarpo ao Largo do Menino Deus (terceira carta)

O Senhor Policarpo tinha vindo de Lisboa para trabalhar na Casa do Povo. Era o homem mais elegante da vila, sempre de chapéu ao lado e fato de três peças, o sorriso meigo, um aceno de simpatia e às vezes um rebuçado para a tosse para oferecer a quem com ele se cruzasse ao fim da tarde no caminho do trabalho para a Casa do Rio (onde viera viver com a filha e o neto depois de enviuvar). O senhor Policarpo tinha uns olhos fundos, sempre marejados de índigo, e mal se lhe ouvia a voz quando o cumprimentávamos.
Em Lisboa – dizia-se – morara no Largo do Menino Deus e trabalhara no Senhor Roubado, numa retrosaria. Agora fazia a escrita da Casa do Povo.
Hoje passaria por um vulgar caso [adjectivo “clássico” riscado] de Dipsomania diagnosticado sem mais delongas.
À sexta-feira descia a rua até à praça e caminhava (sempre seguido pelo Mosto, o perdigueiro a quem o Cauteleiro dava de comer) até à entrada da taberna do Acácio (aquele que era clarinetista e foi a enterrar aqui há uns anos com a Banda atrás da carreta a tocar-lhe El día que me quieras). Descia os dois degraus, pousava o chapéu no balcão e – dir-se-ia que a medo – pedia a primeira taça, sempre a sorrir para um ponto fixo algures entre o calendário das Missões e a telefonia que o Acácio tinha exposta numa prateleira alta entre dois bonecos de barro: um Menino Jesus do Presépio e uma vaca sentada. Apoiava o cotovelo no tampo de mármore e ia bebendo e falando e bebendo e falando, num arrastado rosário de enunciados e invectivas dirigido a interlocutores que o Acácio não via algures entre a telefonia, a vaca e o Menino Jesus.
Depois, já de noite, subia os dois degraus rechaçando o amparo do taberneiro e a oferta de «ao menos um pastel de bacalhau para criar lastro» e ia descendo em direcção ao rio, perguntando sempre pelo Largo do Menino Deus.
Dizia-se que quando dava com a porta de casa gatinhava escada acima, ia acordar o neto mudo, e passava o resto da noite – até o Ezequiel tocar o sino – a mostrar-lhe um álbum de retratos que tinha sempre trancado numa mala de porão que guardava por debaixo da cama.
A minha mãe chamava-lhe «a mala dos segredos».

Cesky Budejovice/ Hotel da Estação Ferroviária, T.G.N.

Cartas da Casa dos Cucos - II

Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A hora do Terço e a corda-do-mato (segunda carta)


Pelo tempo em que a orla da serra se pintava de matizes dourados com laivos de fogo, a Menina Júlia (tão velha como o carvalho do adro) vinha de mãos estendidas oferecer-nos ouriços de castanhas e nozes tipo brobdingnag [sic] que trazia no grande bolso do avental negro. Um dia ensinou-nos a fazer uma corda-do-mato: muito grossa com um gancho de madeira na ponta aproveitado de uma ramada de limoeiro, que nós usávamos para brincar e ela para enlaçar molhos de fetos e restolho que carregava para o cimo da serra ou para dar de comer a uma vaca que tinha na leira do rio.
Mas para chegar outra vez esse tempo ainda faltava a época dos figos, a debulha do milho e as fogueiras altas a esconder da noite as nossas brincadeiras de «meninos das silvas».
[passagem rasurada]
Durante o dia, o rio despenhava-se lá dos cimos da serra, fintava as escarpas de xisto, galgava açudes de musgo e junquilho e vinha enrolar-se manso numa clareira bordejada de amieiros, flores do campo e silvados, mesmo junto à leira da Menina Júlia. Era o lugar onde espantávamos piratas e prometíamos paz aos apache.
Naquele Verão, a vaca da Menina Júlia esteve ali três dias inteiros a boiar; a carcaça inchada, presa nas raízes de um amieiro debruçado sobre o rio. Escondidos detrás do mato, atirávamos-lhe pedras à barriga. Mas, ao contrário das nossas expectativas, não era como um colchão de água que devolvesse os seixos em ricochete: as pedras perdiam-se no pêlo liso do dorso e afundavam-se no leito. O cheiro tornou-se insuportável e já ninguém tomava banho dali para baixo nos açudes da várzea.
A vaca tinha sido presa por uma pata traseira com uma corda-do-mato para não ir às amoras (por essa altura «já o diabo tinha passado por elas»). Caiu à água por um barranco da margem e o gancho prendeu-se na raiz.
Ninguém veio salvá-la porque o sobrinho da Menina Júlia – o Fernanditinho – a internara na véspera da queda «por causa de começar a rir na missa e a mijar-se durante a hora do Terço». Foram os bombeiros que levaram dali o bicho e limparam as águas.
E também ninguém estranhou quando a Guarda foi dar com o Fernanditinho pendurado num castanheiro da orla da serra com uma corda-do-mato a enlaçar-lhe por baixo dos braços o peito já meio estrangulado.

Comboio Krumlov/ Cesky Budejovice, T.G.N.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

O fim do mundo em cuecas

As minhas cuecas são confortáveis. São tão confortáveis que gosto de dormir em cuecas e em casa passeio em pelota só com elas vestido. Não fosse o frio e era capaz de sair para a rua em cuecas.
São bonitas as minhas cuecas. Estou com uns quilos a mais e inscrevi-me num ginásio. Aí está um sítio onde jamais pensaria em ir só de cuecas, porque há nos ginásios quem goste de cuecas e do que lá está dentro. Que incómodo!
As minhas cuecas são confortáveis e às vezes a minha vida parece um fim do mundo. A minha vida não é tampouco o fim do mundo em cuecas!
O que verdadeiramente me importa é estar confortável. Hoje e amanhã. Sempre. Nem que fossem de aço, as minhas cuecas.

domingo, 15 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - I


Nota de apresentação

Quando, muito recentemente, o meu amigo João Barbosa me sugeriu que o acompanhasse e ao Sérgio Carneiro no Cavalo de Dom José, ocorreu-me que, mais do que publicar textos da minha autoria, melhor e mais útil seria dar a conhecer os textos do nosso amigo comum Tiago Góis Naia (desaparecido em 1999 no Canal do Príncipe). Quase dez anos volvidos após o nosso encontro fugaz em Praga, considero ser já tempo de partilhar as pequenas histórias que habitam o caderno que por essa ocasião me ofereceu. A nota biográfica que se segue foi extraída de um folheto elaborado para o lançamento do seu ensaio Belchior e Galo Coxo, evento que não chegou a ocorrer em virtude de, por motivos que não vêem ao caso, ter sido inviabilizada a sua publicação.

Seguir-se-á a transcrição possível do Caderno 4: cartas da casa dos cucos.


Nota biográfica
Tiago Góis Naia (n. 1969-)

Nasceu em Coimbra em 1969 no dia em que Armstrong pisou a Lua. Licenciou-se em História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre 1995 e 1999 foi bolseiro de investigação da Fundação Baluarte (organização fundada em 1983 por oficiais do Exército na reserva) tendo, nesse âmbito, publicado artigos sobre o capítulo dedicado a El Rey Dom Duarte na História Genealógica do teatino António Caetano de Sousa, as viagens do médico José de Anchieta, e a travessia atlântica empreendida em 1958 numa pequena embarcação por José Rodrigues Belchior, Felismina Rosa e Eduardo Galo Coxo. Ao serviço da Fundação, viajou para Praga em 1998 onde, num concerto da cantora canadiana Edith Coeur Bleu no Malostranská Beseda conheceu Alexandre Sarrazola, a quem ofereceu o manuscrito de Caderno 4: cartas da casa dos cucos.
Numa visita de trabalho a Cracóvia, T. Góis Naia envolveu-se num aparatoso episódio de pancadaria à porta do Muzeum Czartorryskisch com o então vice-cônsul português em Praga (numa disputa pela posse do caderno de campo do explorador José de Anchieta), que conduziu ao seu despedimento compulsivo da Fundação Baluarte. Uma versão diferente dos acontecimentos associa a Fundação (hoje extinta) e a actividade dos seus bolseiros a um serviço clandestino de recolha de informações diplomáticas.
O poeta foi visto pela última vez por Aida Zacarias – uma criada muda do Conde da Folgosa – num fim de tarde de Outubro em 1999. Estava aparentemente embriagado e fingia caminhar sobre as águas do Vouga, junto ao Canal do Príncipe, perto de Aveiro. Desde então, é dado como desaparecido (embora haja quem garanta tê-lo visto numa esplanada sobranceira ao Tejo no Inverno de 2003, acompanhado por Edith Coeur Bleu).
É também o protagonista de Krumlov, romance autobiográfico publicado em 2001 pelas Edições Baluarte.


















Lilliput e o Senhor Ezequiel (primeira carta)

Naquele Verão, eu e o Senhor Ezequiel (sacristão de parco préstimo e homem pródigo em frases inacabadas e onomatopeias que aparentemente só ele e os animais entendiam) travámos uma sólida e duradoura amizade. Hoje tenho a pretensão de – no quadro conceptual do que a actual Psicopatologia Compreensiva designa por “reversibilidade fenomenológica” – compreender com alguma lucidez a prodigiosa sucessão de acontecimentos em que se veio a ancorar esta empatia recíproca. Porém, naquele tempo eu era um rapaz de nove anos de idade, o Senhor Ezequiel um homem de cinquenta, e ambos dedicávamos longas horas à companhia dos bichos.
Uma ocasião, estava eu no adro da igreja entretido na tarefa de construir com seixos de rio e pequenos paus de oliveira uma aldeia que copiara de uma ilustração d’ As Viagens de Gulliver, apareceu-me o Senhor Ezequiel sorrindo desdentado sob o sol das três horas daquela tarde de Agosto. Contou-me com escarninhos trejeitos que abandonara no cimo da serra uma saca de serapilheira muito bem atada na boca com um baraço de sisal. No seu interior deixara a gata prenhe que já ia na sétima ninhada, «uma gata brava que me dava conta dos ratos, uma Maria Madalena com bigodes». Limpou a testa suada e foi dormir sesta.
No dia seguinte encontrámo-nos à beira do tanque da rega. Era manhã muito cedo e o Senhor Ezequiel, depois de tocar o sino, viera para ali «ver o naufrágio»: um pacote de leite selado com uma mola da roupa cheio de ratos lá dentro. De olhos parados sobre o lodo e os nenúfares aguardava paciente e feliz a submersão iminente. «Porquê, menino? Agora já não há Maria Madalena para lhes dar caça».
No fim de Agosto inaugurei Lilliput ocupando-a com uma dúzia de lesmas que recolhera na fonte que ficava nas traseiras da torre sineira. A aldeia era fresca e os bichos rastejavam felizes pelos seus caminhos de xisto e habitavam os abrigos de seixos.
[passagem ilegível]
Na manhã seguinte, depois de tocar o sino, o Senhor Ezequiel demorou-se alguns instantes junto de Lilliput e foi recolher-se em casa (vi-o eu pela janela do meu quarto que dava para o adro). Foi sem surpresa que encontrei a aldeia arrasada, os seixos afastados para um lado e os seus minúsculos habitantes espetados na terra com as pequenas traves de ramo de oliveira.
Hoje o Senhor Ezequiel não se queixa das marcas que o baraço de sisal – o mesmo que um dia me ofereceu para brincar no adro – lhe deixa nos pulsos amarrados por detrás das costas ao poste do fundo do seu galinheiro. Quando – dia sim, dia não – lhe vou lá dar de comer, calha por vezes surpreendê-lo com um pinto ou um pescoço de galinha a encher-lhe a boca. Nessas ocasiões não o admoesto. Como ele próprio costumava dizer enquanto curtia as peles de raposa, ou quando o encontrava debruçado sobre o ventre escondido detrás do milho, «também não se deve privar um homem de tudo, menino».

Krumlov, T.G.N.



sábado, 14 de julho de 2007

O meu quarto

O meu quarto tem três janelas. Cada uma tem um bocado de rio. Uma está de frente para a cama e as outras estão de lado. Cada uma de seu lado. Não há luz que me falhe. Por cima da cama tenho um quadro, um Sagrado Coração. Não há luz que me falte.
Todas as noites ajoelho-me voltado para uma janela e rezo a olhar o céu. Sempre um bocado diferente, sempre com uma estrela em mente. O meu quarto tem três janelas.
Tenho telhados à frente, entre as janelas e o rio. Andorinhas, pardais, pombos e gaivotas do vidro ao azul do Tejo e do céu. Vejo roupa estendida, vejo as mulheres a estende-la e outras de gargantas abertas a chamar. Tenho um quarto com três janelas.
Todos os dias rezo, peço ajuda aos meus Santinhos. Amanhã não será dia de dívida. Amanhã não será dia de míngua. Amanhã terei a cama cheia e a barriga também. São de guilhotina as janelas e têm portadas verdes, as três janelas do quarto. Da cama, ao acordar, vejo quadros com a cor que Lisboa me quer dar.
Tenho três janelas no quarto, não há luz que me falhe. Sobre a cabeceira está um quadrinho, um Sagrado Coração, ao qual rezo de joelhos, para que a luz não me falte.