segunda-feira, 14 de abril de 2008

Por Dentro do Cavalo de D. José


Sentindo-se indisposto havia já várias décadas, Cavalo decidiu ir ao hospital da sua área de residência. Dirigiu-se a S. José, onde, muito embora a instituição partilhe o nome do monarca que lhe adorna o dorso, se mostraram renitentes em atendê-lo. O seu médico de família, o physico Mor do Reyno, José Pinheiro de Freitas Soares, tinha, há muito, sido despedido. Para obter novo cartão da caixa, fundamental para poder inscrever-se na consulta, havia que fazer prova de residência, coisa impossível dado que o pedestal de Cavallo não possui número de polícia. Na ausência de um recibo da água ou da luz, de uma cópia do registo de propriedade ou do contrato de arrendamento, só uma declaração do Presidente da Junta de Freguesia lhe podia valer. Foi, assim, até à Rua da Prata, à sede da Junta de S. Nicolau, onde lhe disseram que falasse com uma tal de D. Odete. Pensando que se tratava de uma figura da nobreza, o nosso fidalgo equídeo cometeu a blague de lhe perguntar a que casa pertencia. Odete, uma pertinaz funcionária de uma obesidade entre o mórbido e o obsceno, trajando um vasto tailleur tipo Chanel de fabrico oriental, fitou-o furiosamente por entre as suas madeixas nacaradas, e, após ouvir impacientemente o seu caso, respondeu-lhe que tinha que fazer uma requisição ao Sr. Presidente da Junta e que este não a despacharia num prazo inferior a um mês, por se encontrar muito ocupado com a preparação da participação da freguesia nas Marchas Populares do ano seguinte.
Cavallo perdeu as estribeiras. Investindo à carga pelo gabinete do presidente adentro, deparou-se com este jogando, compenetradamente, a uma versão simplificada do sudoku no suplemento infantil do Diário de Notícias. Perante a colossal figura do éneo quadrúpede em plena fúria guerreira, o Sr. Presidente da Junta apressou-se, com mão trémula, a assinar a necessária declaração.

No Hospital de S. José, Cavallo do homónimo monarca foi submetido a diversos exames. Na impossibilidade de obter informações sobre os órgãos internos do paciente (nem as sondas nem os raios x penetravam o metálico mamífero) os médicos optaram por realizar uma ressonância magnética. Após numerosos testes à máquina para verificar que não estava avariada, o especialista de turno, um jovem clínico croata chamado Josip Baranović, saiu da sala de controlo espavorido como se tivesse visto um fantasma e chamou todos os médicos que pode encontrar. Após uma hora de conciliábulo, o Dr. Manuel de Arriaga, director clínico do hospital e conceituado catedrático de Medicina Interna, dirigiu-se à sala de espera para onde entretanto tinham mandado o nosso quadrúpede e numa voz hesitante dirigiu-se-lhe nestes termos: “sente-se bem, Sr. De D. José?” “Se me sentisse bem não vinha ao physico, meu caro.” Retorquiu Cavallo enfadado. “Desculpe mas o seu caso é de tal forma extraordinário que, em vinte e tal anos de profissão nunca vi uma coisa igual. O Sr. é completamente vazio por dentro, oco, não tem um único órgão no interior do seu corpo.” Declarou o Dr. Arriaga, descendo da sua sapiência de académico e adquirindo a franqueza e impotência de uma criança de oito anos a quem dessem uma equação de terceiro grau para resolver. “então é fácil, homem” respondeu Cavallo: “são gases.”


Cavallo preparando-se para fazer uma ressonância magnética.

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