domingo, 30 de março de 2008

Cartas da Casa dos Cucos - VII

Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A ascensão do sineiro no princípio da Primavera (sétima carta)


A casa está vazia. Todas as salas, os quartos todos. Resta a minha mesa (não é minha), o papel pardo sob o caderno (a fazer de toalha) e o frasco de tinta preta (não chega a ser um tinteiro). Os móveis estão cobertos por lençóis e mantas ensopadas de orvalho. Há janelas partidas para o trânsito dos pássaros e musgo sob as frechas das portas que cresce do terraço para o escritório.
O Senhor Ezequiel fez as pazes comigo. Dorme agora enroscado dentro da minha orelha. Já não o admoesto mais (esqueci-me das lesmas e do rasto que desenhavam sobre as lousas do adro). Atei-lhe os pulsos com gaze (sobrou de uma lata de costura) para estancar o (pouco) sangue. Aninha-se e estende os pés para a minha nuca.
Na segunda gaveta (por baixo desta com fotografias) encontrei a 6.35 do pai (a família ainda por cá anda nos retratos e na papelada roída pelos bichos). A corda-do-mato pendurei-a numa trave do tecto da cozinha (de onde pendia uma gambiarra e hastes de loureiro). Na cozinha começaram a crescer cogumelos, daqueles tenros com pintas vermelhas. Abro e fecho a primeira gaveta. Não são exactamente fotografias; pego-lhes com cuidado e inclino suas imagens: negativos sobre vidro com sais de prata e arestas onde me corto nos dedos.
O Senhor Ezequiel encolheu-se mais para trás e enche a cova da minha nuca. Agora parecemos dois namorados: de testas encostadas na fotografia; a engolir o mar pelas narinas e a deixar desaparecer um ombro nu (fora de campo) no canto estalado. São instantâneos de casamentos, cenas de praia e barcos à vela, tios de mãos dadas, crianças (fatinhos de marujo), gente feliz; dias felizes como este em que combinámos subir a encosta de aveleiras, carvalhos e castanheiros e depois galgar um pouco mais com os fetos a darem-nos pelo peito a anunciar já a luz do topo. Já não há quem toque os sinos. O Senhor Ezequiel tem artroses nas mãos como eu tenho feridas nos dedos.
As arestas dos rostos de gente tão feliz (a casa das fotografias). Lá pelos lados da orla de copas cheias de pássaros descansarei da caminhada. Abro e fecho a gaveta. A 6.35 já vai despachada no bolso do Ezequiel. Está bem ensinado (leva a corda-do-mato enrolada no ombro). «Diz-me uma coisa bonita» e encosta-me bem aquilo à nuca. «Agora somos só um». Depois deixa-me estendido entre a esteva a olhar para ele - magnífico - contra o céu azul (agora azul, que parou de chover no bosque e os bichos vêm conhecer-me, lamber-me as pálpebras, farejar-me as mãos o nariz e os lábios). Logo ali à frente o Ezequiel estaca junto da grande árvore – aquela adornada por uma coroa baixa de cogumelos com pintas vermelhas – e lança a corda por sobre o galho mais forte. Debruça-se mais uma vez sobre o ventre, «só mais uma vez, menino» e adormece em descanso embalado pela música inocente do seu corpo distendido (agora na companhia do Acácio e do Zacarias; um braço abandonado por cima de cada ombro, a rirem dos dias felizes para a máquina dos retratos). [frase “Enquanto ouviam foliões El dia que me quieras.” riscada].
Abro e fecho a gaveta. Reparo na 6.35, na cigarreira e na bússola (esquecemo-nos de a levar para a serra). Acendo o cigarro que resta. Fecho a gaveta e ergo-me; estugo o passo, os restos da chuva da madrugada a colarem-me as calças aos joelhos contra a giesta e a esteva. Deixo para trás o Ezequiel (já não precisamos um do outro; não se aninha já dentro da minha nuca; não toca os sinos). Deixo-o na companhia do velho carvalho, coroado por cogumelos orvalhados e pelo sorriso de seus neófitos amigos a quem se abraça na fotografia. Alcanço o cimo da serra e deixo-me caminhar de olhos fechados. Nunca aqui tinha estado no cimo da serra (esta fotografia junto da bússola e do terço da avó). Abro os olhos: a luz do fim da manhã espanta os bichos e abre-se sobre o vale onde corre um lameiro largo juncado de choupos juvenis e flores do campo. A luz amplifica todas as cores e soergue brilhos e pólenes do lameiro do vale (neste lado da serra onde eu nunca viera). Eis que então se ouvem os sinos no campanário da vila (onde vazia ficou a casa).
Eis enfim o caminho para nenhures.




Santa Apolónia, T.G.N

Cartas da Casa dos Cucos - VI


























Caderno 4: cartas da casa dos cucos
Comédias, Furgão e a companhia do Fogão (sexta carta)


Hoje acordámos no furgão que está ali abandonado sob a latada. Crescem-lhe dentro ervas daninhas e os bichos fazem tocas nos estofos que já foram uma lura (quando o Ezequiel criava coelhos). Acordámos com a chuva a tamborilar no tejadilho.
Hoje pode ter sido dia de visita (embora ninguém me visite vai para mais de quarenta e nove dias, a avaliar pelos riscos na contra-capa do caderno). Hoje pode ter sido um desses dias [expressão “,meu amor” riscada]. É noite. Acordei (já aqui, no “escritório” da casa). Estão dois presentes na minha mesa-de-cabeceira (junto à cama de ferro e ao lavatório de esmalte): o relógio do avô e uma bússola daquelas muito pequenas com uma muito pequena lupa para ampliar pequenas coisas que ficaram órfãs de seus sentidos. Belos objectos sem préstimo para quem já perdeu a conta às horas e o sentido rigoroso do norte (deixamos pelo caminho a bagagem que deixou de nos fazer falta e nem por isso caminhamos mais leves).
No jardim acenderam umas gambiarras que me ferem a vista (acordaram-me como tu me acordavas quando éramos feitos de duas medidas de luz e uma de sombra). Há gente em pijama e camisa de noite a dançar de roda do tanque dos peixes vermelhos - não o da rega, onde se afogavam os gatos vadios - e a cirandar por entre os buxos do jardim. São gambiarras de luzes brancas, amarelas, fracas de brilho. Nada que se compare com aquelas com que o Zacarias da Augusta engalanava o terreiro da ponte para receber as Comédias. Eram dois dias por ano: depois dos Finados e pelo Entrudo. O Zacarias, que era coveiro, tinha boas mãos para as iluminações. Passava a tarde de volta do estendal de luzes e à noite recebia os artistas mais a colecta para o borrego da ceia (a pele já a pingar no chão da loja, prometida para um bornal ou uma gola de samarra no Inverno seguinte).
O avô levava-me pela mão (os olhos marejados de orgulho ou de uma tristeza imperscrutável); olhava o relógio: «já são horas das Comédias». Descíamos a rua do rio até ao terreiro. «Boa noite, Senhor Policarpo. Boa noite, menino», cumprimentavam-nos, uma de cada janela, a Menina Júlia e a Senhora Perpétua. Estugávamos o passo em direcção ao ajuntamento que já rodeava o estrado de tábuas emprestado pela banda filarmónica.
Um velho muito magro fazia o pino e caminhava sobre as mãos roxas como um enforcado voltado às avessas; uma mulher gorda engolia enguias vivas; e um senhor de bigodes aguçados fazia desaparecer sob uma colcha de cambraia «o Cavalo de Dom José» que reaparecia a trote vindo dos lados da rua do rio para gáudio de todos e do meu avô que, por um instante, me soltava a mão e aplaudia gritando “bravos”.
[passagem rasurada]
Depois íamos contando os seixos até à porta de casa «para espantar a fome do tempo». Se, pelo caminho, acontecia pararmos na taberna, o avô metia a mão ao bolso e estendia-me uma bússola pequena apetrechada com uma lupa. «Toma. Assim não perdes o sentido rigoroso do norte nem das letras miúdas no Livro». Sentava-se no degrau da entrada e ficava a ouvir – ao longe – o choro contínuo das crianças dos comediantes.
Agora posso dizer, enquanto olho pela janela do comboio: hoje foi dia de visita e os cucos lá fora já dançam sem mim.

***

A casa agora está vazia. [passagem rasurada onde se lê “de retratos”]
Lá fora já não há quem toque o sino (trindades e finados) e os cucos – se os houve – espantaram-nos as mãos que solícitas traziam aqui copos de água e pratos de louça branca sobre panos de renda (naperons de mãos de caboz moribundo: sempre a beleza das campas floridas). Para os comprimidos; copos de água para os comprimidos. Ficou uma mesa-de-cabeceira com papéis velhos e pontas de lápis alemães. E o fogão a gás que não sei se funciona (desde que se acabou a camomila no saco do nicho deixei de lhe dar préstimo: ao fogão e à tua omoplata de salamandra à superfície da fotografia e da água dos meus olhos).
Ia (iria) jurar que ouvi o Cauteleiro empoleirado numa oliveira – ali em baixo – a tocar El dia que me quieras. Foi ontem. Mas «não pode ser, menino, o Acácio finou-se vai para quase um lustro…», disse-mo a Menina Júlia. Apareceu-me aqui descalça e em camisa de noite: os pés roxos e o carrapito desfeito (tu ontem ao fundo das escadas do Malostranská a soltar uma nuvem loura) com os cabelos a darem-lhe pelos ombros. Eu tão pouco jamais a vira sem o carrapito armado. Abriu as mãos e deu-me uma noz de brobdingnag. «Esta outra é para o Ezequiel» (que dormia dentro do ouvido do menino que era eu). «Não se pode privar um homem de tudo, menino…». Descemos os dois ao galinheiro e esperámos até nos habituarmos à treva. Então o Senhor Ezequiel sorriu para nós (acordado) exibindo uma boca sem dentes: restos de penas coladas à espuma seca das comissuras dos lábios. Eu desatei-lhe os pulsos e a Senhora Júlia passou-lhe o unguento nas feridas deixadas pelo sisal.
O Senhor Ezequiel libertou-se da enxerga de serapilheira e foi a mancar despido até à porta (aqui atrás de mim) que conduz do pátio à rua. Da janela ficámos a vê-lo embrenhar-se para sempre no mato do caminho da serra.
Iria (ia) jurar que se voltou – ao longe – a exibir a noz de brobdingnag antes de desaparecer por entre os carvalhos. A Menina Júlia benzeu-me a testa e desceu a escada a arrastar a camisa pelos degraus.
Agora a casa está vazia. Ficou o fogão a gás como os restos de cartas ficaram espalhados pelo chão: lixo para alguém limpar. Vazia porque eu não conheço aquele homem insone nos espelhos; a casa dos cucos já não me serve. Abri a noz de brobdingnag, engoli-a sem mastigar, e sei que posso agora ir habitar o meu país de histórias.



Praha, Malostranská Beseda, T.G.N.