quarta-feira, 25 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - IV




















Caderno 4: cartas da casa dos cucos
O clarinete e a oliveira (quarta carta)

Aqui deixam-me ter a máquina e um caderno. A cama de ferro e lençóis brancos. Foi ontem. Vinha de lhe dar de comer a malga de sorgo e o Senhor Ezequiel, enquanto lambia os beiços, lembrou-se «dos dias felizes». Aconteciam entre Abril e Maio, antes do calor começar a matar as papoilas. Era ele quem me segurava a mão pelas escadas acima da torre sineira; a Maria Madalena, ainda por emprenhar, seguia-nos afoita e espantava os pombos da beira dos sinos. O Senhor Ezequiel tocava matinas e deixava-me ficar ali. «Depois já sabe, menino, bate com a porta, dá duas voltas à chave e deixa-mas no buraco da tranca». E coxeava pelas sombras abaixo com a gata a brincar-lhe entre as pernas.
Do alto do retiro fresco ouvia tudo: os pombos que regressavam à torre, o rio a tropeçar nos pedregulhos do açude, o Acácio da taberna na azáfama de guardar sachos e enxadas na carrinha abandonada e o Cauteleiro à sombra de uma oliveira do horto a tocar La Llorona no clarinete velho que já fora do pai.
[passagem riscada onde se pode ler:”(…) “Ai de mi llorona, Llorona de azul celeste “(…) “entrou uma cantora canadiana na Vinarna acompanhada de um clarinetista (…) sentou-se junto do palco (…) “Aunque la vida me custe, No lejarei de querer-te”(..)”]
Numa tarde em que me debrucei no anteparo da torre vi os dois irmãos (mais ou menos da minha idade); de cabelo rapado: o mais novo com um casaco do mais velho, o mais velho com uns sapatos de um primo que agora estava na tropa; «parecem dois macacos» dizia o Cauteleiro que tinha vindo tocar para a minha beira.
Às vezes dávamos-lhes de comer; eram iguais a nós em tudo menos nas papadas dos olhos e nas mãos (de velhos); faziam as melhores fisgas do adro. O pai tinha partido as duas pernas num dia longe num lugar longe; agora partia-lhes a cara quando mijavam na cama. Um de gravata o outro de laço, nos olhos um brilho trémulo de orgulho ferido: iam à primeira comunhão da irmã mais nova com roupa de empréstimo.
Às vezes ainda os vejo pelo avesso dos olhos quando me emprestam um lugar a um canto da sala para me vestir da idade adulta: um macaco



Cesky Budejovice/ Vinarna Voltaire, T.G.N.






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