terça-feira, 24 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - III


Caderno 4: cartas da casa dos cucos
O Senhor Policarpo ao Largo do Menino Deus (terceira carta)

O Senhor Policarpo tinha vindo de Lisboa para trabalhar na Casa do Povo. Era o homem mais elegante da vila, sempre de chapéu ao lado e fato de três peças, o sorriso meigo, um aceno de simpatia e às vezes um rebuçado para a tosse para oferecer a quem com ele se cruzasse ao fim da tarde no caminho do trabalho para a Casa do Rio (onde viera viver com a filha e o neto depois de enviuvar). O senhor Policarpo tinha uns olhos fundos, sempre marejados de índigo, e mal se lhe ouvia a voz quando o cumprimentávamos.
Em Lisboa – dizia-se – morara no Largo do Menino Deus e trabalhara no Senhor Roubado, numa retrosaria. Agora fazia a escrita da Casa do Povo.
Hoje passaria por um vulgar caso [adjectivo “clássico” riscado] de Dipsomania diagnosticado sem mais delongas.
À sexta-feira descia a rua até à praça e caminhava (sempre seguido pelo Mosto, o perdigueiro a quem o Cauteleiro dava de comer) até à entrada da taberna do Acácio (aquele que era clarinetista e foi a enterrar aqui há uns anos com a Banda atrás da carreta a tocar-lhe El día que me quieras). Descia os dois degraus, pousava o chapéu no balcão e – dir-se-ia que a medo – pedia a primeira taça, sempre a sorrir para um ponto fixo algures entre o calendário das Missões e a telefonia que o Acácio tinha exposta numa prateleira alta entre dois bonecos de barro: um Menino Jesus do Presépio e uma vaca sentada. Apoiava o cotovelo no tampo de mármore e ia bebendo e falando e bebendo e falando, num arrastado rosário de enunciados e invectivas dirigido a interlocutores que o Acácio não via algures entre a telefonia, a vaca e o Menino Jesus.
Depois, já de noite, subia os dois degraus rechaçando o amparo do taberneiro e a oferta de «ao menos um pastel de bacalhau para criar lastro» e ia descendo em direcção ao rio, perguntando sempre pelo Largo do Menino Deus.
Dizia-se que quando dava com a porta de casa gatinhava escada acima, ia acordar o neto mudo, e passava o resto da noite – até o Ezequiel tocar o sino – a mostrar-lhe um álbum de retratos que tinha sempre trancado numa mala de porão que guardava por debaixo da cama.
A minha mãe chamava-lhe «a mala dos segredos».

Cesky Budejovice/ Hotel da Estação Ferroviária, T.G.N.

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