terça-feira, 24 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - II

Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A hora do Terço e a corda-do-mato (segunda carta)


Pelo tempo em que a orla da serra se pintava de matizes dourados com laivos de fogo, a Menina Júlia (tão velha como o carvalho do adro) vinha de mãos estendidas oferecer-nos ouriços de castanhas e nozes tipo brobdingnag [sic] que trazia no grande bolso do avental negro. Um dia ensinou-nos a fazer uma corda-do-mato: muito grossa com um gancho de madeira na ponta aproveitado de uma ramada de limoeiro, que nós usávamos para brincar e ela para enlaçar molhos de fetos e restolho que carregava para o cimo da serra ou para dar de comer a uma vaca que tinha na leira do rio.
Mas para chegar outra vez esse tempo ainda faltava a época dos figos, a debulha do milho e as fogueiras altas a esconder da noite as nossas brincadeiras de «meninos das silvas».
[passagem rasurada]
Durante o dia, o rio despenhava-se lá dos cimos da serra, fintava as escarpas de xisto, galgava açudes de musgo e junquilho e vinha enrolar-se manso numa clareira bordejada de amieiros, flores do campo e silvados, mesmo junto à leira da Menina Júlia. Era o lugar onde espantávamos piratas e prometíamos paz aos apache.
Naquele Verão, a vaca da Menina Júlia esteve ali três dias inteiros a boiar; a carcaça inchada, presa nas raízes de um amieiro debruçado sobre o rio. Escondidos detrás do mato, atirávamos-lhe pedras à barriga. Mas, ao contrário das nossas expectativas, não era como um colchão de água que devolvesse os seixos em ricochete: as pedras perdiam-se no pêlo liso do dorso e afundavam-se no leito. O cheiro tornou-se insuportável e já ninguém tomava banho dali para baixo nos açudes da várzea.
A vaca tinha sido presa por uma pata traseira com uma corda-do-mato para não ir às amoras (por essa altura «já o diabo tinha passado por elas»). Caiu à água por um barranco da margem e o gancho prendeu-se na raiz.
Ninguém veio salvá-la porque o sobrinho da Menina Júlia – o Fernanditinho – a internara na véspera da queda «por causa de começar a rir na missa e a mijar-se durante a hora do Terço». Foram os bombeiros que levaram dali o bicho e limparam as águas.
E também ninguém estranhou quando a Guarda foi dar com o Fernanditinho pendurado num castanheiro da orla da serra com uma corda-do-mato a enlaçar-lhe por baixo dos braços o peito já meio estrangulado.

Comboio Krumlov/ Cesky Budejovice, T.G.N.

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