quinta-feira, 26 de julho de 2007

Cartas da Casa dos Cucos - V















Caderno 4: cartas da casa dos cucos
A casa de arrumos e o caminho para o rio (quinta carta)


Foi no fim do Verão. Aqui nunca há Verão nem o cheiro das latadas, o pólen das margaridas a colar-se aos dedos, um velho a esmagar-nos o pulso com uma moeda das escuras «para chupar o ferrão da malina da vespa». Podia roubar da torre o Calendário Perpétuo – nunca soube bem do que efectivamente se trata – que ainda assim aqui nunca haveria Verão. Mesmo três vezes repetido no mesmo parágrafo: só a brancura dos lençóis e as salvas de inox com alfaias de gente de mãos bem tratadas e lá fora – do outro lado da janela embaciada – a mata de cedros da Boémia a prometer mais solavancos pelos carris adentro e um ou outro lobo a espreitar entre os troncos.
Perpétua era a amiga da Menina Júlia. Aquela casa de arrumos onde ambas guardavam os frascos vazios para a compota de marmelo do Outono e onde iam buscar diospiros para nos oferecer cobria-se de ceridónia [sic] no tempo quente. Era a panaceia que desde meninas colhiam, quebrando raminhos pelo talo para curarem as feridas uma da outra. «Não há maleita que medre com este leite amarelo, menino. Ora dê cá a mãozinha». E os arranhões das silvas desapareciam, assim como a chaga invisível das urtigas: um milagre da Menina Júlia e da Senhora Perpétua ali junto da casa dos arrumos.
O Fernanditinho não deixava a tia «botar-lhe o unguento»; tinha medo da tinta amarela a escorrer-lhe pelos braços, do toque morno na pele e do seu cheiro doce. «Não, não. Parece mijo de gato» e fugia pelo carreiro que levava dali à leira do rio.
Em caixas de madeira guardavam rolhas e meias velhas e deixavam-nos brincar com elas enquanto, sentadas num banco corrido, iam enxotando e matando os moscardos que lhes pousavam nos joelhos e nos lenços do regaço.
Na rua estreita e sinuosa de seixos e barrigas de cal e pedra que se descia até ao açude, moravam – desde sempre – uma em frente à outra. Uma janela em frente da outra (perto do murmúrio constante do moinho e da levada). Na rua estreita por onde as crianças corriam de toalhas a fazer de turbantes e sacos de plástico com sabão macaco para a barrela da tarde.
[parágrafo ilegível]
Há já muito tempo que não falavam. Viam quem passava, olhavam uma para a outra, perdiam-se nos olhos uma da outra e franziam as testas a revolverem as suas recordações de velhas.
Agora a Senhora Perpétua morreu e a janela da frente está fechada.


Comboio Cesky Budejovice/Praha, T.G.N.

1 comentário:

João Barbosa disse...

Não conhecia ao Tiago Góis Naia esta sabedoria em mezinhas e unguentos... :-)